segunda-feira, 2 de abril de 2012

Cachorrinhos para venda

Cachorrinhos para venda
Um rapazinho olhou para o letreiro d loja onde estava escrito: “Vende-se cachorrinhos.”
— Por quanto vai vender os cachorrinhos? — perguntou.
— Entre 30 e 50 euros — respondeu o dono da loja.
— Tenho 2 euros e 37 cêntimos — disse o rapazinho. — Posso vê-los?
O dono da loja sorriu e assobiou, e do canil saíram cinco bolinhas de pêlo. Um dos cachorrinhos ia ficando bastante para trás. O rapazinho viu imediatamente o cachorrinho atrasado que coxeava, e disse:
— O que é que tem aquele cãozinho?
O dono da loja explicou que ele não tinha o encaixe da anca e que seria sempre coxo. O rapazinho ficou entusiasmado:
— É esse cãozinho que eu quero comprar.
O dono da loja comentou:
— O cão não está à venda. Se o quiseres, dou-to.
O rapazinho ficou muito aborrecido. Olhou bem nos olhos o dono da loja e disse:
— Não quero que mo dê. Esse cãozinho vale cada cêntimo, tal como os outros, e vou pagar o preço total. Vou dar-lhe 2 euros e 37 agora e 2 euros por mês até o ter pago.
O dono da loja insistiu.
— Não podes querer comprar este cãozinho. Nunca vai conseguir correr e saltar contigo como os outros cães.
A isto, o rapaz respondeu, baixando-se e levantando a perna da calça. Mostrou em seguida a perna esquerda muito torta e defeituosa, presa por um grande aro de metal. Olhou para o dono da loja e respondeu suavemente:
— Eu também não corro lá muito bem, e o cachorrinho vai precisar de alguém que o compreenda!

Uma estrela subiu ao céu

Uma estrela subiu ao céu
Estava no chão do recreio, no meio da sujidade. No fim do intervalo grande, Regina pegou nela. Era uma bolacha de Natal em forma de estrela, escura e com uma espessa cobertura de açúcar.
Na sala, Regina pôs a estrela na secretária, em frente da professora, a D. Mariana.
— Encontrei-a no recreio — disse.
— Alguém a deitou fora — disse Carolina.
— Está suja e já ninguém pode comê-la. — disse Francisco.
— Se alguém tivesse fome de verdade, comia-a — assegurava Regina.
— Ugh! Eu nunca iria metê-la à boca — disse Francisco.
A D. Mariana, em silêncio, ouviu as crianças durante algum tempo.
— Qual de vocês já teve fome de verdade, uma fome a sério? — perguntou por fim.
Alguns dedos levantaram-se.
— Uma vez, eu tive de ir para a cama sem jantar.
— Num passeio, no Verão, esquecemo-nos do cesto do piquenique.
— Nós fomos visitar a nossa tia Emília, mas ela não nos ofereceu nada para comer.
— E a vossa fome era tão grande que seriam capazes de comer a estrela? — perguntou a professora.
— Não, não era assim tão grande — respondeu Sandra por todos. — Se se comer uma coisa dessas, fica-se doente.
Então, a D. Mariana contou a história do pequeno Sindra Singh, que vive na Índia longínqua e que tem aproximadamente a idade dos alunos da turma B da terceira classe. Todos os dias, Sindra recebe na estação uma mão-cheia de arroz. São aproximadamente 300 grãos. Um dia Sindra contou-os. Come 150, assim que o senhor da estação lhos dá. Mete 100 grãos à boca quando o sol está alto e guarda o resto para a altura em que o sol se põe. Às vezes, faz batota e começa a comer quando o sol ainda está por cima das árvores.
— O que acham? — pergunta D. Mariana às crianças. — Acham que o Sindra Singh comeria esta estrelinha?
— Eu acho que sim — admitiu Regina.
— Mas, aqui, a bolacha estava caída no recreio, no meio da sujidade.
— O meu avô disse-me que não se deve deitar pão fora — contou Matilde. — Ele disse que aprendeu isso na Rússia, quando esteve preso depois da guerra.
— Em África, as pessoas também passam fome — disse Francisco.
— E no Brasil também. Lá, num certo sítio não choveu durante dois anos — contou Carolina.
— O meu tio escreveu da Anatólia — relatou Zeki. — Houve lá um terramoto e as pessoas já não têm quase nada para comer.
Até ali, Maria não tinha dito nada. Agora pedia para falar.
— Ontem à noite, na festa de Natal, cantámos e tocámos para os pais — disse. — Juntámos algum dinheiro. Com ele, podíamos fazer uma encomenda…
Maria hesitou e sentou-se novamente.
— Um embrulho de Natal! — exclamou Francisco.
— Depois de amanhã, parte da igreja um camião para o local do terramoto — disse Carolina. — De certeza que levava o embrulho!
As crianças estavam entusiasmadas. Escreveram no quadro tudo o que queriam meter no embrulho: chocolate e massapão, farinha, açúcar, biscoitos, conservas e, e, e…
Quando tocou para o intervalo, cada criança da turma sabia o que devia comprar nessa tarde, para se mandar a encomenda. Era o único trabalho de casa desse dia.
No fim, a D. Mariana ergueu a estrela.
— Estou enganada, meninos, ou ela está mesmo a brilhar um bocadinho? — As crianças também acharam que estava um pouco mais clara.
A professora voltou para casa relativamente cansada, mas satisfeita. À noite, o telefone tocou. Era o Sr. Mateus, o pai de Francisco, a queixar-se.
O dinheiro tinha sido reunido para a turma. O dinheiro estava pensado para papel e lápis de cor. O dinheiro era para proveito das crianças da classe B. O dinheiro não era para deitar pela janela.
A D. Mariana objectou que tinham sido as crianças a terem a ideia de, no Advento, fazerem algum bem com aquele dinheiro.
O Sr. Mateus disse que a escola não existia para isso.
— Mas, Sr. Mateus, então o Francisco não contou nada da estrela?
— Estrela? — perguntou o Sr. Mateus. — Mas que estrela?
— Bem — disse a D. Mariana um pouco desamparada — a bolacha de Natal. Quando as crianças tiveram a ideia do embrulho, de repente, ela começou a brilhar. Quero dizer…
— Quer é enfiar-me o barrete, não é? — resmungou o Sr. Mateus. — Vou tomar outras medidas. O ministro…
— Pergunte ao Francisco sobre a estrela. Ele também viu! — podia ainda ter dito a D. Mariana, mas o pai de Francisco já tinha desligado.
Na manhã seguinte, a professora foi para a escola um pouco abatida. O marido tinha-a animado, e sugerido, caso fosse preciso, que pagasse ela própria as coisas para a encomenda, mas a D. Mariana achava que não era a mesma coisa.
No recreio, Francisco veio logo a correr ao seu encontro e entregou-lhe uma carta. A professora abriu apressadamente o envelope e a nota de vinte euros que vinha lá dentro quase voava para o chão. O Sr. Mateus tinha escrito ainda algumas linhas.
Cara D. Mariana,
Falei com o meu filho Francisco. Ainda não sei se é correcto o que pensa fazer, mas tive a impressão de que ainda se via nos olhos do Francisco o brilho da estrela.
Desculpe, por favor, o meu telefonema de ontem. A minha mulher diz muitas vezes que eu sou uma pessoa impetuosa.
No dia seguinte, saiu o camião para a Anatólia com muitas encomendas. No embrulho da turma B, ia uma carta.
Feliz Natal! — estava escrito. Cada uma das vinte e seis crianças escrevera o seu nome por baixo.
— Algures, na Anatólia, uma estrela vai subir ao céu — disse a D. Mariana às crianças.

A árvore que falava

A árvore que falava
Longe, muito longe… bem no coração da savana, vivia uma árvore maior e mais velha do que qualquer outra.
Abrigava, sob a sua corcha, toda a sabedoria de África.
A seus pés, por entre as altas ervas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Como era a única árvore das redondezas, os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. Também as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, a conheciam. E os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta…
E assim a árvore conhecia todos os segredos dos pássaros, dos leões, das girafas, das zebras e de muitos outros animais. É que ela escutava com todas as suas folhas.
Até os homens vinham sentar-se debaixo dela no momento das grandes decisões, discutindo os assuntos sérios à sombra dos seus ramos.
A árvore sabia mais sobre o povo dos homens do que o mais velho dos anciãos e o mais sábio dos sábios. Porque ela sabia calar-se, enquanto eles gostavam de falar.
Mas a árvore não guardava para si o seu saber: àqueles que tinham os ouvidos atentos, ela murmurava, em confidência, a resposta a muitas questões.
Quando os seus filhotes estavam suficientemente grandes para voar, as andorinhas, as cotovias e os estorninhos tinham por hábito levá-los até à árvore. Ao cair da noite, esta enchia-se de chilreios. Passado algum tempo, com três bicadas, os pais faziam calar os mais palradores. E cada um escutava o murmúrio que subia da raiz mais profunda até ao raminho mais alto.
No dia seguinte, os jovens sabiam um pouco mais da arte de voar em ziguezague para enganar as aves de rapina que mergulham sobre as presas. E a águia ou o milhafre regressavam às montanhas de mãos a abanar, perguntando-se por que milagre todos os passarinhos daquele canto da savana se tinham tornado, de repente, tão espertos!
E cada girafinha que partia a mascar um punhado de folhas da árvore ficava a saber um pouco melhor como evitar a leoa que caçava. E, misteriosamente, cada leãozinho, depois da sesta ao pé da árvore, desconfiava um pouco mais do riso da hiena que rondava à procura de uma presa fácil.
Mas os homens, esses, partiam tão sisudos e estúpidos como tinham vindo, e a sua tagarelice nada lhes tinha ensinado porque não sabiam escutar.
Eram orgulhosos e arrogantes. Incendiavam a savana com os seus fogos e matavam mais animais do que aqueles que precisavam para se alimentar. Matavam-se até uns aos outros. E chamavam a isso «a guerra». A árvore falava-lhes, como a todos, mas os homens não a escutavam. Por causa deles, a árvore ficou triste. Pela primeira vez, sentiu-se velha e cansada. Se pudesse, ter-se-ia deitado para esquecer. Mas quando se é uma árvore, é preciso ficar de pé a recordar…
Foi então que as suas folhas amareleceram e secaram e, em breve, ficou nua no meio da savana. Os pássaros começaram a desdenhar dos seus ramos e os leões e as girafas também, porque ela deixou de lhes falar.
E todos diziam que ela estava morta.
* * *
Por muito tempo a árvore seca ficou de pé. E parecia que nada viria alguma vez a mudar… O milhafre da montanha estava contente e as hienas riam-se. A leoa perdeu um leãozinho, a girafa uma girafinha e a andorinha, três passarinhos que mal sabiam voar.
Mas, uma manhã, veio um pequeno homem com um ar decidido. Tinha o olhar de uma criança, e esse olhar não reflectia nem fogo nem sangue. As suas mãos não agarravam nem arco nem zagaia. Contudo, era um homem.
Parou ao pé da árvore seca, estendeu os braços e, com as pontas dos dedos, tocou no tronco, muito devagar, ao de leve, como se acordasse alguém que dorme. A corcha estremeceu. E a voz do pequeno homem subiu ao longo da árvore, terna como um cântico muito antigo. O homem falava à árvore, cheio de simplicidade. Depois, calou-se. E encostando a orelha ao tronco, escutou. O vento nos ramos parecia formar palavras e frases. E quanto mais a árvore falava, mais a expressão do homem se iluminava.
Quando a árvore terminou, o homem partiu. Quando voltou, trazia um machado aos ombros. Uma vez perto da árvore, levantou a cabeça em direcção aos ramos e murmurou algumas palavras em tom de desculpa. Depois, firme nas suas pernas, com o cabo do machado bem preso nas mãos, começou a cortar o tronco.
E a madeira ressoou na savana, até aos limites do deserto e das montanhas.
Cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore.
Todos acorreram para junto dela, mas apenas encontraram um cepo e algumas aparas espalhadas pelo solo.
É que o pequeno homem, ajudado por alguns da sua aldeia, tinha levado a árvore até casa. E, com medo dos homens, os animais não se atreveram a segui-lo.
Uma vez chegados à aldeia, o homem pôs-se a trabalhar. Tinha uma grande ideia: para que a voz de madeira da velha sábia percorresse de novo a savana, iria fazer um tantã.
Um tantã mais sonoro e maior do que qualquer outro. Suficientemente longo para que todos os homens da tribo pudessem tocar em conjunto.
Quando o homem pegava de novo no machado para podar os ramos e deixar, assim, o tronco livre, aqueles que tinham carregado a árvore com ele fizeram-lhe sinal que parasse:
— Pequeno homem, nós ajudámos-te — disseram os homens fortes com as suas vozes grossas. — O nosso trabalho deve ser pago.
— Mas… com que é que vos vou pagar? Eu não tenho nada, bem sabem!
— Deixa-te disso! — insistiram os homens fortes. — Trouxemos a tua árvore, dá-nos a nossa parte.
— Não pode ser — protestou o homem. — É preciso que o tronco fique inteiro para o tantã. Se não, como é que a tribo poderá tocar?
Os homens obstinavam-se a reclamar a sua parte da madeira e o assunto foi levado ao Conselho dos Anciãos.
* * *
Era uma assembleia de homens muito velhos e muito tagarelas. Sempre prontos a pronunciar uma sentença ou um julgamento, tanto a propósito do que conheciam como do que ignoravam. Nada lhes agradava mais do que reunirem-se quando lhes pediam um conselho, e também quando não lhos pediam! Ora, o Conselho tinha por hábito reunir-se debaixo da grande árvore, e os velhos sentiam-se desamparados… pois a árvore tinha sido cortada! O mais velho dos Anciãos, um pequeno velhinho com a face enrugada como uma ameixa seca, agitou o cachimbo por cima da cabeça e tomou a palavra:
— O Conselho não se pode reunir por falta de um lugar adequado.
E expeliu uma baforada do seu cachimbo.
Os outros membros do Conselho, sentados em círculo, aprovaram com um movimento de cabeça, expeliram, cada um, uma baforada do seu cachimbo e guardaram silêncio.
Os homens fortes, que queriam a sua parte da árvore, e o pequeno homem, que nada queria, não sabiam o que fazer.
Impaciente por começar o trabalho, o homem avançou para dentro do círculo, curvou-se respeitosamente diante do mais velho dos Anciãos:
— Digam-me apenas se posso começar o meu trabalho, já que estais aqui reunidos.
— É verdade que estamos aqui — respondeu o Ancião. — Mas o Conselho não está reunido. Por isso, não pode dar a sua opinião.
Expeliu uma outra baforada e calou-se.
Os homens fortes, impacientes por levar a madeira que lhes cabia, inclinaram-se, por sua vez, diante dos Anciãos e disseram:
— Digam-nos apenas se podemos pegar na nossa parte.
O Ancião nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a expelir uma baforada do cachimbo e permaneceu em silêncio.
Mas o mais forte, que também era o mais impaciente, deu um passo em frente.
De imediato, o velho homem largou o cachimbo e, com uma voz trémula, acrescentou precipitadamente:
— O Conselho vai reunir… para decidir onde terá lugar o próximo Conselho.
O discurso enfadonho que se seguiu poderia ter durado até ao final dos tempos, se o Conselho não tivesse acabado por decidir… que decidiria mais tarde!
De seguida, os velhos aconselharam o pequeno homem a dar aos homens fortes o que eles pediam. Depois, reclamaram, por sua vez, um pedaço da árvore como recompensa pelo sábio conselho. E o pequeno homem assim o fez, porque era costume dar uma prenda aos Anciãos, como agradecimento pelos seus conselhos.
E cada um se apressou a serrar, a rachar e a atar.
E o pedaço de árvore não tardou a transformar-se em achas, toros e feixes para queimar. Os homens acendiam fogueiras à volta da aldeia para manter afastados os animais selvagens. Ignoravam que os animais tinham ainda mais medo deles do que das suas fogueiras.
* * *
Um pouco desiludido, o pequeno homem reparou na diminuição do tronco, mas disse para si mesmo que, apesar de tudo, ainda chegava para fazer um bom tambor para a tribo.
Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. O machado, no entanto, não era muito adequado para o descortiçamento, por isso decidiu ir a casa de um vizinho pedir emprestado um podão, cuja lâmina curvada faria melhor o serviço. Como era hábito, o vizinho estava a fazer a sesta e o pequeno homem acordou-o para lhe fazer o pedido.
— Ah! És tu? — disse o vizinho, bocejando como um hipopótamo. — O que queres de mim?
— Podias emprestar-me o teu podão? — perguntou muito educadamente o pequeno homem.
— Eh! — respondeu o vizinho, tão amável quanto um crocodilo a quem interromperam a digestão. — Não me deixas dormir com esse barulho todo… E ainda por cima queres que te empreste o meu podão! E se eu precisar dele?
— Mas… é só por um dia! Amanhã já terei acabado!
— O que me dás em troca?
— Sabes bem que não tenho nada de meu.
— Ah não? E essa árvore? É tua, não é?
— Sim, mas… — começou o pequeno homem.
— Pois bem, dá-me um pedaço para alimentar a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu podão.
Assim se fez, já que mais ninguém na aldeia tinha a ferramenta de que o pequeno homem precisava.
Um pouco desiludido, atentou no tronco, agora mais pequeno. No entanto, havia ainda madeira para fazer um tantã para a tribo.
Lançou-se ao trabalho, cheio de coragem. E o descortiçamento depressa terminou.
Mas, quando quis cavar o tronco, apercebeu-se de que não tinha cinzel para o fazer.
De certeza que o vizinho tinha um, mas será que lho emprestaria sem reclamar mais um pedaço da árvore?
Infelizmente, mais ninguém da aldeia tinha cinzel. E era preciso acordar novamente o hipopótamo, amável como um crocodilo.
— Tu, outra vez! — bocejou o vizinho. — O que queres?
— Desculpa — disse o pequeno homem com a sua voz gentil. — Vim devolver-te o podão… e pedir-te, em troca, um cinzel, se fazes o favor.
— Em troca? — zombou o vizinho. — Não há troca nenhuma porque o podão é meu. Dá-me um pedaço de madeira para a minha fogueira e emprestar-te-ei o meu cinzel.
* * *
Assim foi feito. E o pequeno homem, um pouco desiludido, atentou no tronco muito curto. Ainda podia fazer um bonito tantã, não para toda a tribo, mas, mesmo assim, um bonito tantã. Cheio de coragem, meteu mãos à obra e depressa cavou o tronco. Faltava apenas endurecê-lo ao lume, para que fosse mais sólido e para que o seu som chegasse mais longe.
Mas o pequeno homem não tinha fogueira e já havia dado tanta madeira aos outros que não possuía o suficiente nem para atear um fogo. Claro que a fogueira do vizinho crepitava, um pouco mais longe, mas não ousava acordá-lo pela terceira vez.
Foi então pedir aos homens fortes a permissão de passar o seu tantã pelo fogo.
— De acordo, — disseram eles — mas com a condição de pores uma acha na nossa fogueira, como todos fazem.
— Mas… já não tenho madeira, já vos dei tudo! — respondeu.
— Ah sim? E isto, isto não é madeira? — perguntou o mais forte dos homens fortes, indicando o pequeno tantã.
Com a morte na alma, o pequeno homem teve de se resolver a cortar um pedaço do tantã antes mesmo de lhe ter ouvido a voz.
E quando pensou naquilo que lhe restava do imenso tronco que a árvore lhe tinha dado, esteve quase para se sentar a chorar e abandonar o seu belo projecto.
Mas caiu de novo em si e disse para si mesmo que, apesar de tudo, se não chegasse para um tantã, chegaria para fazer um grande tambor.
Cheio de coragem, meteu mãos à obra e o que restava do tantã foi rapidamente convertido em djembé. (Djembé é o nome que se dá em África a esta espécie de tambor). Mas o pequeno homem apercebeu-se de que lhe faltava uma pele de cabra para o tambor.
Partiu então à procura do rebanho de cabras. A rapariga que as guardava era ainda quase uma criança, e o pequeno homem pensou que seria mais fácil falar com ela.
— Bom dia — disse à criança.
— Bom dia — respondeu ela. — És tu que dás madeira a toda a gente em troca de uma ferramenta ou de lume?
— Sim, quer dizer… — começou ele.
— O que queres de mim? — interrompeu a criança.
— Apenas uma pele de cabra, uma daquelas que tens por aí. Mas já não tenho madeira para te dar.
— É pena — disse a rapariga. — Porque também eu necessito de um pouco de madeira. Para afastar os leões do meu rebanho não há nada melhor do que uma boa fogueira, disseram-me os Anciãos.
— Oh, por favor, dá-me uma pele. Bem vejo que não te fazem falta — suplicou o pequeno homem.
— Pelo contrário, as minhas peles, troco-as por madeira! — retorquiu a criança.
E, como mais ninguém na aldeia tinha peles de cabra, o homem foi obrigado, uma vez mais, a cortar um pedaço do tambor.
* * *
A pele de cabra era dura e seca, frágil como uma corcha. Antes de a colocar no tambor, era preciso macerá-la, fervê-la, esticá-la, batê- la, para a tornar mais suave e tão sólida como o couro.
Só faltava levá-la ao curtidor.
Aquele que curtia todas as peles da tribo morava sozinho fora da aldeia, perto do rio. O seu trabalho requeria muita água. E os outros não tinham querido que ele se instalasse perto, devido ao cheiro insuportável das peles molhadas.
Mas, por mais longe que o curtidor morasse, também ele tinha ouvido falar da árvore abatida. Por sua vez, reclamou uma parte, como prémio do seu trabalho.
— Mas já não há nenhuma árvore! — lamentou-se o pequeno homem. Ficou apenas um tambor!
— De acordo — concluiu o curtidor. — Contentar-me-ei com um bocado do tambor.
E o pequeno homem cortou e deu-lhe a madeira, e a pele foi curtida, seca e ficou pronta a ser colocada no djembé.
Quando quis esticá-la, deu-se conta de que lhe faltava uma corda para o fazer.
Foi então à procura daquele que na aldeia melhor sabia entrançar cordas. É que a corda que estica a pele de um djembé tem de ser sólida.
Tal como os outros, o entrançador de cordas pediu um pouco de madeira. Apesar dos seus protestos e lamentos, o pequeno homem nada conseguiu. E o tambor ficou ainda mais pequeno.
Regressou a casa perturbado, com a corda ao ombro. Ao ver o tambor tão pequeno, perguntou-se se teria valido a pena o trabalho.
Depois, recordou a árvore que se erguia no meio da savana. Lembrou-se da promessa que lhe tinha feito e sentiu de novo coragem. Depressa a pele de cabra foi colocada no djembé, em arco, e muito esticada por uma rede de nós sólidos e complicados.
* * *
O homem olhou para o seu djembé, finalmente pronto! Claro que era um djembé muito pequenino, bem diferente daquele tantã que ele quereria ter talhado e no qual toda a tribo teria tocado em conjunto. No entanto, o homem não ficou decepcionado, porque era um belo djembé: esculpido, polido, suficientemente largo para as suas pequenas mãos, e suficientemente grande para lhe caber entre os joelhos. Então, quis experimentá-lo. Com as palmas e os dedos pôs-se a tocar. E a voz que saía deste tambor, tão pequenino que mais parecia um tambor de criança, era ampla e vasta e profunda como a floresta.
O homem sentiu-se arrebatado e as suas mãos continuaram a tocar… E a voz imponente do pequeno djembé estendeu-se a toda a aldeia e à savana inteira.
Um por um, todos os membros da tribo aproximaram-se dele. Tinham vindo todos: desde o mais ancião dos Anciãos à pequena guardadora de cabras, do mais forte dos homens fortes ao vizinho crocodilo. Tinham deixado as suas fogueiras, as suas conversas enfadonhas e as suas sestas, para formar um círculo em redor do pequeno tambor. E faziam silêncio.
Do pequeno djembé elevavam-se palavras e frases que diziam toda a savana: o medo da zebra que foge à azagaia do caçador ávido, o sofrimento da erva que curva perante a chama acesa pelo homem, a doçura do vento que murmura nos ramos da árvore… E os homens escutavam. Eles, que só pensavam na caça, na guerra e nas fogueiras, faziam silêncio.
Assim, até aos limites da montanha e do deserto, cada pássaro, cada leão e cada girafa reconheceram a voz da velha árvore. E, graças às mãos do pequeno homem, todos partilharam de novo o seu saber, por muito tempo ainda. Porque, ao som do djembé, o cepo da antiga árvore germinou. Do jovem rebento brotou uma nova árvore.
E, sob a sua corcha de árvore, corria a seiva da sabedoria de África.
A seus pés, por entre as ervas altas, a leoa espiava o antílope ou a zebra que se tinham afastado do grupo. Os pássaros, que se empoleiravam nos ramos mais altos, conheciam-na bem. E as girafas, que comiam as folhas dos ramos do meio, e os leões, que se estendiam sob os ramos baixos para fazerem a sesta.
Até os homens…